O Supremo Tribunal Federal (STF), no dia 16 de fevereiro de 2017, julgou um Recurso Extraordinário RE 580252, com repercussão geral reconhecida, que foi interposto pela Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul (DP-MS) em favor de um condenado que cumpria pena no Presídio de Corumbá (MS). O referido RE foi interposto contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça local que, embora tenha reconhecido a condição degradante em que o condenado estava cumprindo pena, entendeu que o detento não teria direito à indenização por danos morais.
Em sessão plenária foi definida a seguinte tese, por unanimidade, para fins de repercussão geral:
“Considerando que é dever do Estado, imposto pelo sistema normativo, manter em seus presídios os padrões mínimos de humanidade previstos no ordenamento jurídico, é de sua responsabilidade, nos termos do artigo 37, parágrafo 6°, da Constituição, a obrigação de ressarcir os danos, inclusive morais, comprovadamente causados aos detentos em decorrência da falta ou insuficiência das condições legais de encarceramento”.
É importante ressaltar que o STF não generalizou a indenização a qualquer detento, pelo contrário, especificou um requisito: comprovação do dano causado em decorrência da falta ou insuficiência das condições legais de encarceramento. Ou seja, só terá direito aquele que comprovar ter sido recluso em situação degradante.
Entretanto, embora o STF tenha definido tal parâmetro, é de conhecimento comum que os estabelecimentos carcerários não possuem condições mínimas de humanidade, bem como, sofrem com a superlotação e falta de higiene. Aliás, o STF já definiu a referida situação como: “estado inconstitucional de coisas” pelas sucessivas violações aos Direitos Humanos, oportunidade do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n° 347.
O acórdão da ADPF traz em seu bojo inúmeras evidências das constantes violações aos direitos que deveriam ser garantidos aos detentos. Destaco um trecho da decisão:
“Diante de tais relatos, a conclusão deve ser única: no sistema prisional brasileiro, ocorre violação generalizada de direitos fundamentais dos presos no tocante à dignidade, higidez física e integridade psíquica. A superlotação carcerária e a precariedade das instalações das delegacias e presídios, mais do que inobservância, pelo Estado, da ordem jurídica correspondente, configuram tratamento degradante, ultrajante e indigno a pessoas que se encontram sob custódia. As penas privativas de liberdade aplicadas em nossos presídios convertem-se em penas cruéis e desumanas. Os presos tornam-se “lixo digno do pior tratamento possível”, sendo-lhes negado todo e qualquer direito à existência minimamente segura e salubre. Daí o acerto do Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, na comparação com as “masmorras medievais”.
Nesse contexto, diversos dispositivos, contendo normas nucleares do programa objetivo de direitos fundamentais da Constituição Federal, são ofendidos: o princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III); a proibição de tortura e tratamento desumano ou degradante de seres humanos (artigo 5º, inciso III); a vedação da aplicação de penas cruéis (artigo 5º, inciso XLVII, alínea “e”); o dever estatal de viabilizar o cumprimento da pena em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e sexo do apenado (artigo 5º, inciso XLVIII); a segurança dos presos à integridade física e moral (artigo 5º, inciso XLIX); e os direitos à saúde, educação, alimentação, trabalho, previdência e assistência social (artigo 6º) e à assistência judiciária (artigo 5º, inciso LXXIV).”
Como se vê, o STF já havia reconhecido a situação degradante que vivenciam os detentos diariamente, não causando surpresa ter decidido pela indenização. Contudo, há algumas complementações necessárias que faço com embasamento fático e jurídico:
Primeiramente, não se pode pensar que a responsabilidade pelo atual cenário penitenciário brasileiro é exclusiva da União. Some-se a parcela do Legislativo, do Judiciário e de todos os Poderes Públicos, em todas as esferas: municipais, estaduais e federais. Há, nas palavras do Min. Marco Aurélio, uma ausência de coordenação institucional (ADPF n° 347). Não há mobilização por parte do Poder Público em geral, em razão da ausência de investimentos, políticas públicas, interesse legislativo e judiciário.
No âmbito do Poder Executivo e Legislativo há clara omissão e a razão é muito simples: Propostas para melhoria dos presídios não geram votos. O tema é espinhoso nos bate-papos diários brasileiros. É melhor não falar para evitar debates acalorados e discussões (brigas) desnecessárias, e vida que segue para quem goza de sua liberdade. Por outro lado, aquele que brada pela melhoria é recepcionado pela ira da opinião pública. No entanto, a frase emblemática do Min. Marco Aurélio sintetiza a questão: “A opinião pública não possui diploma de bacharel em Direito. ” (ADPF nº 347), e ainda complementa:
“Em síntese, a solução das graves violações de direitos fundamentais dos presos, decorrentes da falência do sistema prisional, presentes políticas públicas ineficientes e de resultados indesejados, não consegue avançar nas arenas políticas ante a condições dos presos, de grupo social minoritário, impopular e marginalizado. Nesse cenário de bloqueios políticos insuperáveis, fracasso de representação, pontos cegos legislativos e temores de custos políticos, a intervenção do Supremo, na medida correta e suficiente, não pode sofrer qualquer objeção de natureza democrática.”
No âmbito Judiciário, o buraco é mais embaixo. Há manutenção de incontáveis detentos que já cumpriram a pena em sua integralidade e continuam presos. Não é surpresa que, no Brasil inteiro, mutirões do CNJ, das Defensorias Públicas, dentre outros órgãos, conseguem atingir números surpreendentes de libertação de detentos cumprindo pena além do tempo necessário. Além disso, o Judiciário, diariamente, institui números excessivos de prisões cautelares, que poderiam ser evitadas, auxiliando diretamente, à superlotação carcerária.
Importante ressaltar que as leis existem: Lei 7.210/84 (Lei de Execução Penal) e Lei Complementar n° 79/94 (Lei do Fundo Penitenciário Nacional), são exemplos de leis que asseguram vários direitos que não são cumpridos, em sua totalidade, pelas autoridades públicas no exercício de suas obrigações. O maior exemplo é o artigo 41, da Lei de Execução Penal:
Art. 41 – Constituem direitos do preso:
I – alimentação suficiente e vestuário;
II – atribuição de trabalho e sua remuneração;
III – Previdência Social;
IV – constituição de pecúlio;
V – proporcionalidade na distribuição do tempo para o trabalho, o descanso e a recreação;
VI – exercício das atividades profissionais, intelectuais, artísticas e desportivas anteriores, desde que compatíveis com a execução da pena;
VII – assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa;
VIII – proteção contra qualquer forma de sensacionalismo;
IX – entrevista pessoal e reservada com o advogado;
X – visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias determinados;
XI – chamamento nominal;
XII – igualdade de tratamento salvo quanto às exigências da individualização da pena;
XIII – audiência especial com o diretor do estabelecimento;
XIV – representação e petição a qualquer autoridade, em defesa de direito;
XV – contato com o mundo exterior por meio de correspondência escrita, da leitura e de outros meios de informação que não comprometam a moral e os bons costumes.
XVI – atestado de pena a cumprir, emitido anualmente, sob pena da responsabilidade da autoridade judiciária competente.
Entretanto, ainda citando a ADPF nº 347, elenco a violação destes direitos, mencionado pelo Min. Marco Aurélio:
“Os presídios e delegacias não oferecem, além de espaço, condições salubres mínimas. Segundo relatórios do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, os presídios não possuem instalações adequadas à existência humana. Estruturas hidráulicas, sanitárias e elétricas precárias e celas imundas, sem iluminação e ventilação representam perigo constante e risco à saúde, ante a exposição a agentes causadores de infecções diversas. As áreas de banho e sol dividem o espaço com esgotos abertos, nos quais escorrem urina e fezes. Os presos não têm acesso a água, para banho e hidratação, ou a alimentação de mínima qualidade, que, muitas vezes, chega a eles azeda ou estragada. Em alguns casos, comem com as mãos ou em sacos plásticos. Também não recebem material de higiene básica, como papel higiênico, escova de dentes ou, para as mulheres, absorvente íntimo. A Clínica UERJ Direitos informa que, em cadeia pública feminina em São Paulo, as detentas utilizam miolos de pão para a contenção do fluxo menstrual.
Além da falta de acesso a trabalho, educação ou qualquer outra forma de ocupação do tempo, os presos convivem com as barbáries promovidas entre si. São constantes os massacres, homicídios, violências sexuais, decapitação, estripação e esquartejamento. Sofrem com a tortura policial, espancamentos, estrangulamentos, choques elétricos, tiros com bala de borracha.
Quanto aos grupos vulneráveis, há relatos de travestis sendo forçados à prostituição. Esses casos revelam a ausência de critério de divisão de presos por celas, o que alcança também os relativos a idade, gravidade do delito e natureza temporária ou definitiva da penalidade.
O sistema como um todo surge com número insuficiente de agentes penitenciários, que ainda são mal remunerados, não recebem treinamento adequado, nem contam com equipamentos necessários ao desempenho das próprias atribuições.
O quadro não é exclusivo desse ou daquele presídio. A situação mostra-se similar em todas as unidades da Federação, devendo ser reconhecida a inequívoca falência do sistema prisional brasileiro.”
Assim, resumidamente, a Corte Suprema utilizou 05 fundamentos para dar procedência ao referido RE:
a) são incontroversos os fatos da causa e o dano moral, uma vez que os detentos que cumprem penas privativas de liberdade em condições, não só juridicamente ilegítimas – porque não atendem as mínimas condições de exigências impostas pelo sistema normativo – mas também humanamente ultrajantes, já que não seguem um padrão mínimo de dignidade;
b) a questão jurídica do recurso restringe-se à existência, ou não, da obrigação do Estado de ressarcir os danos morais verificados nas circunstâncias ditas anteriormente;
c) não é aplicável o Princípio da Reserva do Possível, pois, a matéria situa-se no campo da responsabilidade civil do Estado, extraída diretamente do artigo 37, §6º, da Constituição Federal, preceito normativo autoaplicável não sujeito à intermediação legislativa ou providência administrativa de qualquer espécie;
d) é dever estatal, derivado do ordenamento interno e de fontes normativas internacionais, incorporadas ao Direito Pátrio, garantir a segurança pessoal mínima, física e psíquica dos detentos;
e) não é viável invocar, seletivamente, razões de Estado para negar aos detentos o direito à integridade física e moral, sob a consequência de deixá-los numa condição de vulnerabilidade juridicamente desastrosa.
Em verdade, a indenização sobre o dano moral abrange a retirada, diária, de direitos assegurados pela Constituição Federal. O destinatário desta situação caótica apresentada, sustentada por tantas omissões, suporta dano passível de indenização, cujo valor, a meu ver, é imensurável, e o dano, presumível.
Para buscar a referida indenização, portanto, é necessário que o próprio detento (se solto), ou seus familiares (se preso), procurem um advogado para o ingresso de uma ação judicial, com base na decisão do STF, visando a reparação de danos morais pelas condições degradantes que vivenciaram ou ainda estão vivenciando.
Caso tenha interesse, segue o vídeo da sessão de julgamento:
https://www.youtube.com/watch?v=G-E9Uc_RDkI&t=454s
Fontes:
http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2600961
http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=4783560
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=336352&caixaBusca=N
Thiago Kondo Sigolini
OAB/SP 390.953